Crítica | Xógum: A Gloriosa Saga do Japão (2024) - Plano Crítico (2024)

Crítica | Xógum: A Gloriosa Saga do Japão (2024) - Plano Crítico (1)

Prometo que limitarei minhas comparações entre a minissérie do FX sob análise com a clássica minissérie de 1980 estrelada por Richard Chamberlain e Toshiro Mifune e com o romance homônimo de 1975 escrito por James Clavell aos três primeiros parágrafos da presente crítica, por ser razoavelmente provável que poucos tenham lido o livro ou assistido à sua primeira adaptação audiovisual. Mas considero importante iniciar traçando alguns paralelos macro para poder afirmar, com muita segurança, que Xógum: A Gloriosa Saga do Japão, minissérie desenvolvida por Rachel Kondo e Justin Marks (depois de uma reformulação completa da produção) é um exemplo notável de como adaptar uma obra literária, ou seja, de como extrair a essência da inspiração primígena e transformá-la em uma obra nova, com identidade própria e que fica de pé por seus próprios méritos, sem escorar-se em obrigações de fidelidade subserviente ao material original.

Kondo e Marks materializaram aquilo que Clavell realmente escreveu em sua obra e que poucos percebem: Xógum, como fica claro já pelo título, não é a história de John Blackthorne, piloto/marinheiro britânico de um navio holandês que é o primeiro de seu país a colocar os pés no Japão e o primeiro ocidental a tornar-se samurai. Sim, essa premissa, baseada em fatos históricos envolvendo William Adams que, no ano de 1600, realmente alcançou o arquipélago nipônico e foi albergado sob as asas do daimyo e regente Tokugawa Ieyasu, que se tornaria xógum três anos depois e iniciaria uma dinastia que duraria mais de 260 anos, é fascinante por si só, mas o que Clavell colocou no papel foi a história de Yoshi Toranaga (sei que na série é Yoshii, mas estou falando do livro), sua versão de Tokugawa Ieyasu, como o líder japonês de mente estratégica e paciência quase divina, que usa todos os seus subordinados como peões em seu complexo e lento jogo de xadrez. Blackthorne é, apenas, a “ponte” narrativa entre Oriente e Ocidente, algo que era muito mais necessário para o público geral em 1975, quando o romance foi publicado (e também em 1980 quando a primeira minissérie foi lançada), do que agora, em 2024.

Portanto, o que luxuosamente chega às telinhas da segunda década dos anos 2000 sob comando de Kondo e Marks é puro Clavell, mas depois de passar pelo cuidadoso, delicado e inteligente liquidificador narrativo da dupla que rearruma e suprime eventos, reduz a relevância da história de amor proibido que perpassa a narrativa original (e que a minissérie de 1980 colocou descaradamente em primeiro plano), encaixa melhor os conflitos religiosos por Blackthorne ser protestante e encarar os Jesuítas portugueses que há décadas estavam no Japão convertendo de plebeus a nobres como inimigos mortais, faz de Blackthorne um personagem mais pé no chão e eleva e reenquadra tanto os fascinantes aspectos geopolíticos da obra, como principalmente as maquinações e conspirações de Toranaga e o lado pessoal de diversos outros personagens, incluindo Blackthorne, Toda Mariko, Kashigi Yabushige, Usami Fuji e Ochiba no Kata, criando uma rede coesa e ao mesmo tempo de amplo alcance, mas fácil de acompanhar e com uma paleta de cores fria, escura, acinzentada – só quebrada pelos suntuosos figurinos e trabalhos de maquiagem – que combina com a abordagem sóbria, pesada, por vezes até nihilista que difere do material base e, claro, muito mais ainda da minissérie da dupla Chamberlain/Mifune.

Mas eu prometi parar as comparações no terceiro parágrafo e é o que faço agora. Independente de qualquer elogio ao trabalho de adaptação, fato é que Xógum: A Gloriosa Saga do Japão é uma quase completamente irretocável minissérie de ficção histórica que faz o espectador olhar para um importante momento da história do Japão, em que décadas de guerra civil começa a chegar ao fim, com Yoshii Toranaga (Hiroyuki Sanada), um dos cinco regentes do país, isolado contra os outros quatro liderados por Ishido Kazunari (Takehiro Hira) que quer por um fim ao poder crescente de seu inimigo. A série se dá ao trabalho de contextualizar muito bem os detalhes desse equilíbrio de poder, seja pelo uso de textos expositivos que pouco parecem expositivos, por serem inseridos em momentos cirúrgicos que passam naturalidade, pelo emprego de flashbacks também muito bem inseridos que permitem uma visão mais ampla das motivações dos personagens e – um artifício muito simples, sinceramente – a legendagem de todo o diálogo travado em japonês, algo que destaco, pois a minissérie de 1980 não fazia, o que sem dúvida foi uma escolha ousada, mas que privou a primeira adaptação desse espaço narrativo.

Blackthorne (Cosmo Jarvis) é, como disse, a “ponte” para o espectador ter a oportunidade de aprender sobre as complexidades daquele momento espaço temporal e sua presença ao longo da história é justificada por ele ser uma espécie de carta curinga, capaz de atiçar a raiva da Igreja Católica e dos daimyos convertidos e de oferecer conhecimento que os Jesuítas não querem que venham à luz, para Toranaga que imediatamente passa a manipular a própria existência e permanência do navegador britânico como um ás na manga a ser usado como uma ferramenta de aquisição de poder. Para efetivamente tornar possível a comunicação do britânico com os japoneses, uma intermediária é empregada, Toda Mariko (Anna Sawai) que funciona como intérprete e interesse romântico para Blackthorne e uma conselheira não oficial, mas completamente leal a Toranaga que fala português por ter ser convertido ao catolicismo anos atrás em uma história cheia de tragédia e de dor que destaque a maldição que pode ser viver e o quanto morrer pode ter função e objetivo, uma linha narrativa filosófica que é mantida acesa do começo ao fim da minissérie.

Hiroyuki Sanada consegue entregar uma atuação fenomenal como Toranaga, um homem capaz de qualquer coisa para alcançar seus objetivos, mas que tem plena consciência do que ordena e dos efeitos de suas ordens nele mesmo e naqueles ao seu redor, algo manifestado pelas delicadas alterações faciais e corporais do ator, mesmo quando está completamente imóvel, o que é normal para o personagem. Arriscando uma comparação que pode, para muitos, soar como heresia, tenho para mim que, apesar do trabalho de altíssima qualidade de Toshiro Mifune em 1980, Sanada parece estar alguns degraus acima nesse papel. Anna Sawai, por seu turno, foi uma surpresa completa, pois eu conheci a atriz na tenebrosa série Monarch: Legado de Monstros e imediatamente a arquivei mentalmente como uma indigente dramática. Aqui, porém, se ela não exatamente mostra que é uma grande atriz, pelo menos deixa evidente que ela pode ser considerada uma atriz e que tem futuro, prova cabal de que roteiro decente é fundamental para que o elenco tenha espaço de manobra.

Falando em espaço de manobra, Cosmo Jarvis é um exemplo diferente de latitude dramática. Ele tem todo o espaço do mundo para brilhar, com um personagem interessante, complexo e profundo, um verdadeiro estranho em terra estranha que sofre e luta para entender o funcionamento de um povo milenar completamente diferente dos europeus, mas o ator simplesmente não convence. É, de muito longe, a escalação mais equivocada da minissérie, o único realmente grande erro da produção, diria. Se Chamberlain – o primeiro Blackthorne – nunca foi bom ator e não atuou bem na minissérie de 1980, ele pelo menos tinha presença de palco, tinha conexão com seus pares, algo que falta em Jarvis, especialmente quando a torneira dramática é aberta e ele precisa mostrar que sabe fazer mais do que apenas cara feia. A grande vantagem, porém, é que Jarvis não é ruim o suficiente para “estragar” a minissérie e ele raramente está em cena sozinho ou dominando o ambiente por completo. Em oposição ou ao lado de Sanada e/ou Sawai, tudo fica melhor e aceitável, o mesmo valendo para a presença carismática do ótimo Tadanobu Asano que constroi um Kashigi Yabushige que é ao mesmo tempo cômico e trágico, inteligente e manipulável, por vezes até mesmo equiparando-se em qualidade dramática com Sanada e seu Toranaga, com o personagem estabelecendo conexão imediata com Blackthorne e criando uma boa dupla com o limitado Jarvis.

Já que estou falando do grande aspecto negativo da série, outro me vêm à cabeça, ainda que não seja um problema enorme. A minissérie tem um design de produção magnífico, com cenários detalhados construídos em Vancouver, no Canadá e alguma pós-produção na Irlanda, normalmente fazendo uso da cobertura florestal desses países, pelo que não há nada de errado aí, muito pelo contrário. Minha questão – seria implicância? – é pela perda de oportunidade de se filmar em locação no Japão pelo menos as sequências externas do castelo de Osaka, que permanece substancialmente igual hoje ao que era na época em que a série se passa. O CGI das externas do castelo é bom, mas nada supera a realidade, mesmo que a pós-produção tivesse que necessariamente matizar as cores para combinar com a abordagem fria da série. Faltou esse cuidado, algo que a minissérie de 1980 fez com absoluta categoria.

Mesmo sem filmagens em locação no Japão e com Jarvis atrapalhando a experiência, Xógum: A Gloriosa Saga do Japão é para além de um grande exemplo de adaptação audiovisual de obra literária, uma produção imersiva, complexa e belíssima, além de triste, violenta e, por vezes, chocante. É, no final das contas, um épico de ficção histórica que há muito não via na televisão, mesmo considerando a oferta infinita de séries e minisséries por aí. E olha, eu sei que o que havia no livro foi levado para as telinhas, mas há mais história real a ser contada, pelo que eu não ficaria nada triste se Rachel Kondo e Justin Marks resolvessem continuar a saga por mais algumas temporadas!

Xógum: A Gloriosa Saga do Japão (Shōgun – EUA, de 27 de fevereiro a 23 de abril de 2024)
Desenvolvimento: Rachel Kondo, Justin Marks (baseado em romance de James Clavell)
Direção: Jonathan van Tulleken, Charlotte Brändström, Frederick E.O. Toye, Hiromi Kamata, Takeshi f*ckunaga, Emmanuel Osei-Kuffour
Roteiro: Rachel Kondo, Justin Marks, Shannon Goss, Nigel Williams, Emily Yoshida, Matt Lambert, Maegan Houang, Caillin Puente
Elenco: Hiroyuki Sanada, Cosmo Jarvis, Anna Sawai, Tadanobu Asano, Takehiro Hira, Tommy Bastow, Fumi Nikaido, Néstor Carbonell, Tokuma Nishioka, Hiroto Kanai, Yasunari Takeshima, Moeka Hoshi, Yuki Kura, Ako, Ned Dennehy, Hiromoto Ida, Toshi Toda, Takeshi Kurokawa, Yuki Takao, Yuka Kouri, Sen Mars, Dakota Daulby, Nelson Leis, Hiro Kanagawa, Yuki Kedoin, Nobuya Shimamoto, Yutaka Takeuchi, Joaquim de Almeida, Yukijiro Hotaru, Shinnosuke Abe, Louis Ferreira, Paulino Nunes, Yoriko Dōguchi, Mako Fujimoto, Yuua Yamanaka, Junichi Tajiri, Eisuke Sasai, Yuko Miyamoto
Duração: 585 min. (10 episódios)

AkoAnna SawaiCaillin PuenteCharlotte BrändströmCosmo JarvisDakota DaulbyEisuke SasaiEmily YoshidaEmmanuel Osei-KuffourFrederick E.O. ToyeFumi NikaidoHiro KanagawaHiromi KamataHiromoto IdaHiroto KanaiHiroyuki SanadaHomeJames ClavellJoaquim de AlmeidaJonathan van TullekenJunichi TajiriJustin MarksLouis FerreiraMaegan HouangMako FujimotoMatt LambertMoeka HoshiNed DennehyNelson LeisNestor CarbonellNigel WilliamsNobuya ShimamotoPaulino NunesRachel KondoSen MarsShannon GossShinnosuke AbeTadanobu AsanoTakehiro HiraTakeshi f*ckunagaTakeshi KurokawaTokuma NishiokaTommy BastowToshi TodaXógum - televisãoYasunari TakeshimaYoriko DōguchiYuka KouriYuki KedoinYuki KuraYuki TakaoYukijiro HotaruYuko MiyamotoYutaka TakeuchiYuua Yamanaka

Crítica | Xógum: A Gloriosa Saga do Japão (2024) - Plano Crítico (2)

Ritter Fan

Aprendi a fazer cara feia com Marion Cobretti, a dar cano nas pessoas com John Matrix e me apaixonei por Stephanie Zinone, ainda que Emmeline Lestrange e Lisa tenham sido fortes concorrentes. Comecei a lutar inspirado em Daniel-San e a pilotar aviões de cabeça para baixo com Maverick. Vim pelado do futuro para matar Sarah Connor, alimento Gizmo religiosamente antes da meia-noite e volta e meia tenho que ir ao Bairro Proibido para livrá-lo de demônios. Sou ex-tira, ex-blade-runner, ex-assassino, mas, às vezes, volto às minhas antigas atividades, mando um "yippe ki-yay m@th&rf%ck&r" e pego a Ferrari do pai do Cameron ou o V8 Interceptor do louco do Max para dar uma volta por Ridgemont High com Jessica Rabbit.

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